Campeonato por pontos corridos: o prego no caixão do futebol brasileiro

 

 

A decadência dos times brasileiros não começou com o brasileirão por pontos corridos. Ela teve início por volta de 1985 quando os italianos e espanhóis começaram a sistematicamente levar nossos melhores craques. A situação só piorou, atualmente perdemos bons jogadores até pras ligas da Ucrânia e da Turquia. O elenco da maioria dos nossos times mistura garotos recém-saídos das divisões de base com veteranos que já não são mais atraentes para os estrangeiros. Se antigamente o Santos era capaz de manter Pelé e companhia por 15 anos, hoje sabemos que qualquer time que começar a ganhar demais vai ser rapidamente desmanchado como se fosse um fusca velho. Não adianta chorar, só vamos reverter esse quadro no dia em que tivermos clubes-empresas economicamente fortes o suficiente para competir com os europeus. Isso exige que os torcedores estejam motivados, que os estádios estejam cheios, que as transmissões tenham boa audiência.

 

Só que estamos caminhando para o lado errado. Quem se lembra de novembro de 2002? Os torcedores de norte a sul estavam ligados nas últimas rodadas do brasileirão, pois praticamente todos os times brigavam para se classificar ou para não cair. Depois ainda tivemos um mata-mata sensacional em que o Brasil parou para ver o Santos dos garotos Robinho e Diego, que tinha sido irregular ao longo do campeonato, dar show de bola e ficar com o título. Que diferença das melancólicas últimas rodadas do brasileirão 2006!

 

Mas mesmo com todas as evidências que o campeonato por pontos corridos é desinteressante para o torcedor e ruim para os clubes, parece que discutir seriamente esse assunto é um tabu na imprensa. Todo mundo “do bem”, todo Juca Kfouri, tem que ser a favor dos pontos corridos. Ao contrário, quem é contra mostra que tem uma mentalidade atrasada, interesses escusos ou é amigo do Eurico Miranda. Vejamos o que a matemática tem a dizer sobre o campeonato por pontos corridos.

 

Matemática

 

Um campeonato por pontos corridos com 20 times fazendo turno e returno é como um torneio de golfe: regularidade é tudo. Vamos a um exemplo. Suponha que após a rodada 13 (um terço do campeonato) o Flamengo esteja na 13o posição com 13 pontos, mas apenas 12 pontos atrás dos líderes São Paulo e Internacional que estão com 25 pontos. Aparentemente, desde que o time melhore sua campanha, parece que ainda existem amplas chances do Flamengo ser campeão, afinal ainda faltam 25 rodadas, os 12 pontos de diferença não são nada em relação aos 75 pontos que ainda vão ser disputados. Certo? Errado. Porquê? Evidentemente se o Flamengo ganhasse todos os seus próximos 25 jogos ele seria campeão. Só que isso nunca aconteceu na história do futebol. O que realmente pode acontecer é o Flamengo melhorar a sua média de pontos conquistados por jogo até o resto do campeonato. Até quanto ele pode melhorar? Dificilmente para mais do que 2,17 por jogo, o recorde  histórico obtido pelo Cruzeiro no campeonato de 2003. Suponhamos então que o Flamengo passe a ter esse fantástico aproveitamento. Ele vai ser campeão? Provavelmente não. Para que isso aconteça nem o São Paulo nem o Internacional poderiam ter um aproveitamento no resto do campeonato melhor do que 1,69 por jogo, o que é bem menos do que o 1,92 que eles já conseguiram nesse início de campeonato. Além disso, todos os outros times do terceiro ao décimo-segundo lugar não poderiam ter um aproveitamento maior do que um determinado valor entre 2,17 e 1,69 por jogo. Os matemáticos estatísticos sabem que a probabilidade da ocorrência conjunta de doze eventos costuma tender a zero, mesmo que cada um deles tenha uma chance razoável de acontecer. É o caso aqui. A probabilidade calculada do Flamengo ser campeão é próxima de zero. Em outras palavras, uma má campanha no primeiro terço do campeonato é um lastro negativo suficiente para impedir que um time seja campeão, mesmo que depois ele melhore muito.

 

Esse exemplo pode ser generalizado, as probabilidades exatas teriam que ser calculadas levando em conta o fato do campeonato de um determinado ano estar mais ou menos equilibrado, mas grosso modo podemos afirmar que no brasileirão vale o seguinte:

 

 

 

 

Estatisticamente fora = probabilidade de ser campeão próxima de zero, mesmo que o time passe a ter uma excepcional campanha, igual ao do recorde histórico.

 

Dado que o torcedor dos grandes times brasileiros não fica feliz com nada menos do que o título, não é de se admirar que a média de público de quem está no meio da tabela só vá caindo ao longo do campeonato!

 

Por outro lado, suponhamos que os pontos corridos estivessem sendo usados para classificar os quatro melhores para um mata-mata. Nesse caso a situação mudaria radicalmente. A probabilidade do Flamengo (supondo uma campanha de 2,17/jogo) se classificar seria maior que 95% ! Em outras palavras, mesmo com uma má campanha no primeiro terço do campeonato, um time ainda só dependeria dele mesmo para se classificar. Esse aparente paradoxo - ser relativamente fácil virar uma situação adversa para se chegar ao quarto lugar, mas ser quase impossível chegar ao primeiro - também acontece em outros esportes. Por exemplo, Schumacher largou na última fila do GP do Brasil 2006 e chegou exatamente na quarta posição graças ao seu talento e carro superiores.  Entretanto só um milagre o faria ganhar a corrida.

 

Justiça

 

Muitas pessoas admitem que o campeonato com finais é mais emocionante, mas acham que os pontos corridos têm que ser mantidos porque é o sistema mais justo possível, o melhor time sempre é o campeão. Esse argumento é falho. Um tribunal tem obrigação de ser o mais justo possível. Um exame vestibular tem obrigação de ser o mais justo possível. Mas um campeonato de futebol poderia perfeitamente sacrificar um pouco dessa “justiça” para ganhar muito em emoção, o que vai satisfazer o torcedor e possibilitar que os clubes ganhem dinheiro. Aliás, é exatamente para isso que serve um campeonato.

 

Mas também podemos refutar esse argumento de forma mais profunda e afirmar que um campeonato decidido num mata-mata entre os quatro times com mais pontos não seria absolutamente percebido como injusto. Isso porque a fria justiça que os pontos corridos promovem não corresponde ao instinto de justiça do ser humano. Um exemplo:

 

Suponhamos que Guga em seus bons tempos chegou a final de Roland Garros. Ele entra em quadra irreconhecível, comete erros bisonhos e perde o primeiro set por 0/6. Continua péssimo no segundo set, quebra uma raquete no chão e toma outro 0/6. No terceiro set ele finalmente consegue achar seu jogo, equilibra a partida e depois de salvar vários match points ele consegue vencer no tie break por 7/6. A partida segue equilibradíssima, mas Guga consegue 7/6 e 7/6, chegando a vitória depois de 4 horas de batalha.

 

Qual seria a reação da platéia? Guga sairia da quadra carregado em homenagem a sua incrível virada? Ou será que ele seria vaiado? Afinal algum idiota da objetividade poderia dizer que por games corridos ele perdeu por 30 a 21. Eu apostaria todo o meu dinheiro na primeira hipótese.

 

O instinto de justiça humano tem peculiaridades que a lógica dos pontos corridos ignora:

 

 

 

Os Campeonatos Europeus

 

 

O sistema de pontos corridos sempre foi usado nos melhores campeonatos europeus. Daí muitas cabeças pensantes do nosso jornalismo esportivo chegaram à conclusão que o caminho para chegarmos ao nível de organização do futebol deles obrigatoriamente passa pela adoção desse simples, racional e justo sistema. Esse raciocínio já começa ignorando o fato que os campeonatos dos Estados Unidos sempre usaram o sistema de play-offs com enorme sucesso. Isso já é suficiente para mostrar que pontos corridos não são a única opção.  Só que infelizmente o equívoco é ainda mais grave, dá para mostrar que o sistema europeu não tem como ser transplantado com sucesso para o Brasil.

 

Muitos já reconhecem que o sistema de pontos corridos causa desinteresse no torcedor brasileiro, ele perde a motivação no momento em que ele sente que seu time já não tem chances de ser campeão. Só que isso é atribuído a uma espécie de subdesenvolvimento da nossa mentalidade torcedora! Afinal de contas porque será que a civilizada torcida do La Corunã lota os estádios quando seu time está em oitavo lugar na tabela e os atrasados Botafoguenses, Cruzeirenses ou Santistas não? Há quem diga que precisamos de mais alguns anos para nos acostumarmos com os pontos corridos. Quando isso acontecer o torcedor finalmente vai entender a importância de incentivar a sua equipe a disputar uma vaga na Copa Sul-Americana, assim como os europeus dão importância à disputa de vaga na Copa da UEFA.

 

Mas alguém percebe a óbvia diferença entre o brasileirão e os campeonatos europeus?  Em cada país da Europa só existem dois ou três times grandes. No Brasil são doze.

 

Vamos analisar o ultra bem sucedido campeonato espanhol. Só temos dois times grandes, Real Madrid e Barcelona. Isso não tem como ser contestado, juntos eles ganharam 37 dos últimos 50 títulos. Não é raro que a disputa pelo título se tranforme numa corrida de obstáculos entre eles para ver quem tropeça menos nos outros dezoito times. Na verdade os pontos corridos são a única fórmula capaz de evitar que o Campeonato Espanhol seja o mais chato do mundo. Para um torcedor do Barcelona ou do Real Madrid que graça teria a fase classificatória para um mata-mata de quatro times? Nenhuma, mesmo nos anos ruins esses times sempre ficam entre os quatro. Os torcedores do Real Madrid e do Barcelona são tão subdesenvolvidos quanto os nossos. Eles não comemoram vice-campeonato, só dão valor para Copa do Campeões e fazem protestos nas ruas se o time cair para quinto lugar na tabela. Por outro lado, os torcedores da meia dúzia de times médios da Espanha realmente podem ficar contentes apenas com uma vaga na Copa da UEFA. E os torcedores dos demais pequenos times acham maravilhoso estar na primeira divisão e poder assistir a jogos contra times maiores nas suas próprias cidades de interior.

 

No Brasil é muito diferente. O maior patrimônio do nosso futebol são os doze grandes clubes: Grêmio, Internacional, Santos, São Paulo, Palmeiras, Corínthians, Vasco, Flamengo, Botafogo, Fluminense, Atlético Mineiro e Cruzeiro. Todos esses clubes contam com milhões de torcedores e já foram campeões brasileiros desde 1971. Mas é muito mais do que isso. Temos as grandes conquistas, as galerias de ídolos do passado, as lendas e as tradições. Todos esses clubes podem se orgulhar de terem estado entre os melhores do mundo em alguns momentos de suas histórias. E não podemos esquecer os times médios que frequentam a primeira divisão, eles estão longe de serem cartas fora do baralho. Sempre temos um ou dois deles beliscando os primeiros lugares e de fato Guarani, Coritiba, Sport, Bahia e Atlético Paranaense chegaram a ganhar o título. Será que quem defende os pontos corridos realmente esperava que as nossas torcidas passasem a se comportar como se fossem torcidas de times pequenos? A conclusão é que um campeonato brasileiro compatível com a grandeza dos nossos clubes e o equilíbrio de suas forças não pode adotar um sistema que sempre vai tirar as esperanças de título da maioria das equipes antes da sua metade.

 

E esse raciocínio também ajuda a explicar porque os play-offs funcionam nos campeonatos de futebol americano, basquete e beisebol dos Estados Unidos. Trata-se de um país continental. Isso propicia a existência de vários times fortes, que sempre aspiram ao título. Um campeonato por pontos corridos iria frustrar seus torcedores antes da hora.

 

Será que o objetivo dos pontos corridos no Brasil é ajudar a fazer com que deixem de existir tantos times grandes?  Se for está dando certo. É claro que não é só isso, a falta de profissionalismo na administração dos clubes é um problema crônico. Mas do jeito que a coisa vai não é nada difícil que vários dos nossos grandes acabem por se tornarem pequenos nas próximas décadas.

 

2-Dez-2006

 

Eduardo Uchoa é matemático, professor da UFF e torcedor do Botafogo.